Jovens abdicam de vida social para participar do maior festival de dança amadora da América Latina
Por: Liliane Pappen
Fim de noite e, enquanto milhares de jovens saem das faculdades da capital com destino as suas casas, outros tantos seguem um caminho diferente: O CTG.
São 23 horas e 12 pares se
preparam para mais um ensaio. O objetivo é conquistar a classificação para a
grande final do ENART – Encontro de Arte e Tradição – que acontece anualmente
em Santa Cruz do Sul, no centro do estado, em meados de novembro.
Na construção deste sonho, os
dançarinos do DTG – Departamento de Tradições Gaúchas – Lenço Colorado abrem mão de momentos em família, de compromissos sociais, dos amigos e, em
alguns casos, até mesmo dos relacionamentos.
Reunidos no centro do palco, os
jovens traçam metas e sonham com o domingo da final. Foram muitos desafios. A
primeira etapa foi vencida com suor e lágrimas na fase regional. Na inter-regional,
ocorrida no último final de semana em Venâncio Aires, a disputa foi ainda mais
acirrada. “Dançamos com outros 22 grupos que almejavam essa vaga, somente 10
passaram. Em cada fase precisamos fazer nosso melhor. Esse é o nosso espírito
colorado. Quando ninguém mais acredita, vamos lá e colocamos nossa alma e
coração”, afirmou o instrutor da invernada, Rinaldo Souto.
Começa o ensaio. No galpão,
localizado junto ao Parque Gigante do Sport Club Internacional, o tablado ecoa
os sapateios e sarandeios dos dançarinos enquanto o grupo musical canta o
levante – introdução da dança - de uma tirana. Antes das 2 horas da manhã,
ninguém descansa.
Temática da
apresentação
Em cada edição do festival, um
novo espetáculo temático é apresentado. Em 2013, uma das coreografias mais
marcantes do DTG Lenço Colorado foi encenada. O grupo abordou o viés histórico
das “mulheres guerreiras”. Estancieiras, criadas e escravas que, pela
necessidade da guerra, aprenderam a empunhar armas na defesa de seu lar,
enquanto os homens lutavam no decênio farroupilha.
Com o passaporte carimbado para a
semifinal, o grupo já trabalha na construção de um novo tema, mantido em
segredo até a pré-estreia. “Já estamos com a pesquisa em mãos e esse ano
pretendemos inovar. Vamos promover “spoilers” usando as redes sociais. Uma dica
aqui, outra lá e os fãs do Lenço vão construir nosso enredo ainda antes de
estrearmos”, contou Franciele Guterres Santin Haubold, coordenadora da invernada adulta.
Assim como o contexto da
coreografia, os trajes típicos também sofrem uma minuciosa pesquisa e retratam
a época e a classe social que os dançarinos representam. Conforme Rinaldo,
nenhum elemento é inserido na coreografia ou indumentária ao acaso. “Tudo
precisa ser estudado para que não haja descontos na hora da apresentação. O
tipo de tecido, as cores, os acessórios, a pilcha da prenda e do peão precisam
ser condizentes com o que estamos coreografando na pista. Por isso, uma extensa
pesquisa sobre o tema e os trajes é entregue à comissão avaliadora”, relatou o
instrutor.
O investimento financeiro também
é alto. De acordo com Liliane Poitevin Sales, agregada das pilchas – responsável pelas
finanças do grupo – cada traje pode custar mais de mil reais. “Nosso grupo se
caracteriza pelo perfil de estancieiros. Em nossas coreografias resgatamos a
história da nobreza gaúcha, por isso, nossas pilchas usam tecidos finos e
muitos acessórios, o que acaba onerando o preço final”, disse a agregada. A
composição dos figurinos conta com vestidos, sapatilhas, anáguas – saia de
armação, joias, botas, casacos, lenços, palas, ceroulas de crivo e bragas –
espécie de calção de veludo até a altura dos joelhos e usado sobre as ceroulas
que deixam os crivos (bordados) à mostra – elaborados conforme a temática da
apresentação, mas com um detalhe: assim como a coreografia, os trajes não serão
repetidos no ano seguinte.
Tradição em família
Abre a gaita e já nos primeiros
acordes a pequena Bibiana Hikari Andrade Niiho, prenda mini-mirim da entidade,
abre a saia rodada e começa a sarandear. Ela tem apenas 5 anos e cresceu dentro
do galpão. A mãe Laurelisa Andrade e o pai Kazuhico Niiho, dançavam na
invernada até 2014. Hoje, a pequena acompanha a dinda Carlisa Andrade, que
apesar da ruptura em um tendão do pé direito por causa da dança, só aguarda a
liberação do médico para voltar ao tablado.

O tradicionalismo está no sangue e no nome. Apesar da origem oriental – o pai é descendente de
japoneses – a menina foi batizada de Bibiana, referência à personagem do livro “O
tempo e o Vento” de Érico Veríssimo. Apaixonada pelas danças, Bibiana conhece,
uma a uma, as coreografias do grupo e imita, do lado de fora do tablado, os
passos das dançarinas.
Vestida de prenda com um dos modelos da invernada, especialmente feito para ela, e ostentando a faixa de Bonequinha do
DTG, Mirella de Oliveira Souza, de apenas 3 anos, acompanha a mãe nos ensaios. Filha
de Cristina de Oliveira Gonçalves, que participa do grupo desde 2004, e Leandro
Souza, a menina praticamente nasceu no Lenço Colorado.

Liliane vai além na sua relação com a invernada. Ela conta que os filhos não dançam mais, mas mesmo assim, continua trabalhando em
prol do grupo. “Sinto como se eu tivesse uma missão junto ao Lenço e a esses
jovens. Quando eu cheguei, eles eram todos adolescentes. Hoje são adultos, cada
um com sua vida, mas com um sonho em comum. Um sonho que eu sonho com eles a
cada ano. Não é fácil. Temos imensas dificuldades financeiras e pessoais,
brigamos, discutimos e nos arrependemos, mas o bom de estar aqui é que, juntos,
formamos uma família. A família Lenço Colorado”.
Um amor para toda a vida
Juciandro de Oliveira, 42 anos, é casado com Fabiana Grassi, a quem conheceu dançando em invernada e com quem divide os tablados nos rodeios e festivais. O vendedor, que dança há mais de 25 anos, já passou por CTGs como o extinto Estância Farroupilha, pelo CTG Lanceiros da Zona Sul e hoje, aposta no Departamento de Tradições Gaúchas do Sport Club Internacional, o Lenço Colorado.

Entretanto, a
coceira nos pés não deixou o casal sossegado. Pouco mais de um mês depois da
saída, resolveram, por curiosidade, assistir a um dos ensaios de preparação
para a inter-regional. A paixão falou mais alto. O coração bateu mais forte e como
sempre, unidos, decidiram retornar. “Não
resistimos. Isso é uma cachaça, vicia. Vi o grupo e pensei... Vou dançar só
mais esse ENART”, conta Juciandro. De “só mais esse”, Juciandro e Fabiana
seguem colocando nas apresentações, toda a experiência e amor pela dança gaúcha,
acumulados ao longo de quase uma vida.
Classificados
para a grande final em Santa Cruz do Sul, Juciandro e Fabi são só sorrisos.
Unidos em todos os momentos, de crise ou alegria, o casal comemora a conquista
e afirma que para a felicidade ser completa só falta ficar entre os 5. “Daí,
danço mais uns 5 ENART’s”, afirmou Juciandro. O DTG Lenço Colorado torce por isso!
GALERIA DE FOTOS![]() |
Novo tema já está sendo preparado para os 30 anos do ENART - Foto: Deivis Bueno |
Final do Enart acontece entre os dias 20 e 22 de novembro, em Santa Cruz do Sul |
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Ser gaúcho vai além da descendência, é um estado de espírito |
Reunido, grupo traça estratégias para chegar à final |
Perfil Lenço Colorado: Peões representam estancieiros da côrte gaúcha |
Musical desempenha papel fundamental na hora do espetáculo |
Três danças tradicionais são sorteadas poucos minutos antes da apresentação |
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Nos ensaios, filhos acompanham os pais e aprendem os primeiros passos de dança |
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Objetivo do grupo é ficar entre os 5 melhores do estado. - Foto: Deivis Bueno |
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Coreografia resgatou recortes da história da Revolução Farroupilha - Foto: Deivis Bueno |
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